terça-feira, março 12, 2013

O Cinema dos Anos 2000: Dia de Treino, de Antoine Fuqua




A figura do polícia corrupto possui um longo historial recheado de títulos incontornáveis: desde A SEDE DO MAL (Orson Welles, 1958), um dos primeiros expoentes sobre a temática, e com explorações mais bem conseguidas do que outras através de HARRY — O DETECTIVE EM ACÇÃO (Ted Post, 1973), SERPICO (Sidney Lumet, 1973), POLÍCIA SEM LEI (Abel Ferrara, 1992) ou COP LAND — ZONA EXCLUSIVA (James Mangold, 1997), a análise cinematográfica aos ambíguos agentes da lei, no panorama do cinema norte-americano, já é uma tradição.

Nesse sentido, DIA DE TREINO não só retoma essa abordagem narrativa, como a actualiza, segundo os anseios sociológicos dos anos 2000, com a sua contextualização para uma Los Angeles familiar e, simultaneamente, alheada de qualquer lugar-comum, tanto a nível geográfico como humano. As vítimas da sociedade estão impregnadas do mesmo sofrimento rítmico da banda sonora do filme (abundante em hip-hop agressivo), totalmente credíveis (mesmo quando são interpretadas por nomes como Macy Gray ou Snoop Dogg) e em harmonia, nos actos e palavras, com a violência de uma sociedade que não encontra conforto na justiça da Los Angeles Police Department.

Essas personagens são, também, vítimas amargas das ameaçadoras imposições de Alonzo Harris (Denzel Washington), detective consagrado e senhor das ruas da Cidade dos Anjos, responsável por acompanhar o primeiro dia do jovem e ingénuo Jake Hoyt (Ethan Hawke) na corporação. Em poucas horas, Harris convence Hoyt a consumir marijuana e doses exageradas de álcool, recomenda uma "lógica profissional" de disparar primeiro e colocar questões depois, e recorre aos serviços do caloiro para escapar de um embaraço do qual nem a corrupção policial de Los Angeles inteira lhe poderá valer.

O confronto entre os dois protagonistas, no seio de uma sociedade suburbana em que as vincadas diferenças de riqueza não atenuam idênticos baixos valores morais entre classes, será inevitável mas DIA DE TREINO pertence a Denzel Washington e ao seu Alonzo Harris. Autêntica subversão da típica personagem afro-americana sensata que Hollywood aperfeiçoou durante décadas — e, por acréscimo, da habitual imagem da corrupção policial no cinema norte-americano —, Washington cria um "monstro" larger-than-life cuja visão e carisma não garantem sabedoria nem rectidão. E a sua queda, tal como o clímax do filme demonstra, só poderia ser reactiva, sangrenta e oriunda do mesmo violento universo que ajudou a criar.

DIA DE TREINO é um dos melhores thrillers policiais dos anos 2000 não só pelas sinuosas reviravoltas e tensão crescente do seu argumento, mas também por manter-se afastado de confortáveis fórmulas morais. Alonzo Harris usa, indubitavelmente, Hoyt como peão no seu esquema elaborado. Contudo, aparenta ter alguma afeição pelo "pupilo", na esperança de que este perpetue as suas regras numa selva urbana de anarquia racial, social e espiritual. E, no cômputo final, cabe mais ao espectador do que a Hoyt julgar as implicações éticas, que se sobrepõem ao conflito físico do "bom polícia versus mau polícia", aqui manipuladas por Antoine Fuqua.

por Samuel Andrade.

Elenco
. Denzel Washington (Detective Alonzo Harris, Ethan Hawke (Jake Hoyt), Scott Glenn (Roger), Tom Berenger (Stan Gursky), Harris Yulin (Detective Doug Rosselli), Raymond J. Barry (Capitão Lou Jacobs), Cliff Curtis (Smiley), Dr. Dre (Detective Paul), Macy Gray (esposa de Sandman), Charlotte Ayanna (Lisa Hoyt), Eva Mendes (Sara)


Palmarés
. Oscars da Academia: Melhor Actor (Denzel Washington)


Sobre Denzel Washington

Intenso, versátil e considerado, de forma quase unânime, como um dos melhores actores da sua geração, protagonizou biopics de personalidades da comunidade afro-americana — Malcolm X em MALCOLM X (1992, Spike Lee) ou Rubin 'Hurricane' Carter em O FURACÃO (1999, Norman Jewison) —, exibindo semelhante naturalidade em papéis ausentes de identificação racial, como são os exemplos de MARÉ VERMELHA (1995, Tony Scott), O COLECCIONADOR DE OSSOS (1997, Philip Noyce), HOMEM EM FÚRIA (2004, Tony Scott) e INFILTRADO (2006, Spike Lee).



1 comentário:

O Narrador Subjectivo disse...

Grande filme. Quanto ao Denzel Washington, há dias vi a entrevista do Tom Hanks com o James Lipton e ele dizia basicamente que o Denzel foi o melhor actor com quem já trabalhou. Acho que está tudo dito.

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